segunda-feira, 29 de novembro de 2010

CRÔNICA - PÉSSIMOS FISIONOMISTAS

Péssimos fisionomistas




É complicado pertencer à categoria dos péssimos fisionomistas. Situações das mais constrangedoras ocorrem com quem precisa ver um rosto ao menos umas cinquenta vezes para poder reconhecê-lo depois. Isso sem contar a fama de antipático que se adquire por não cumprimentar aquele conhecido, daquele jantar do mês passado, que você, obviamente, acha que não conhece.

Era a inauguração de uma empresa, eu conversava com a mãe de uma amiga, quando me aparece uma efusiva senhora, visivelmente satisfeita com minha humilde presença:

- Oi! Tudo bem contigo? Quanto tempo! - e me abraça.

Eu retribuo:

- Olá! Tudo bem, como vai... (e penso em um nome. Para mim, esse rosto não existia até então, que dirá um nome para ele...)... a senhora?

- Bem, bem... Que saudades! Foi tão boa a última vez que nos encontramos! Tua palestra foi tão linda, lembra como rimos tanto juntas naquela vez, Paulinha?

Jesus amado! “Que vez?”. É só o que me passa pela cabeça.

Conversa vai, conversa vem, conversa me falta, tenho receio de dar uma furada e chatear a senhora tão simpática. Raios, eu deveria ter perguntado quem era ela, me desculpado por achar que essa era a primeira vez que conversávamos, logo no início dessa conversa em que eu só uso a função fática da linguagem, sentindo-me ridícula e vazia, sem assunto. Bem, e como eu vou dizer a uma singela senhora, que me chama carinhosamente por um diminutivo e sente até saudades minhas que não a conheço? Que não faço ideia de quem ela é, embora pareça que eu já convivi com ela antes? Já imaginou a cena?

“Que saudades, Paulinha!”

“Desculpe, eu não sinto saudades suas, porque sou péssima fisionomista, eu acho que não devo lhe ter visto cinquenta vezes ainda, portanto não sei quem você é, como vou sentir saudades?”

Então, até que enfim, a agradável senhora se despede. A pessoa em si era agradável, a minha situação é que não era. “Conversamos durante a noite!” ela me disse e eu respondo “Claro!”, mas só penso “tomara que eu te reconheça se nos encontrarmos de novo esta noite.”

Volto, então, à conversa inicial, com a mãe da amiga:

- Escuta, que saia-justa... quem é esta senhora?

- O quê? Tu não a conheces?

- Não.

- Mas vocês conversaram tanto, se abraçaram, estavam até com saudades, achei que se conhecessem há anos!!!

- Pois é...

- Cada um que me aparece...



Por Ana Paula Milani, novembro de 2010

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Ah, os carros...

Ah, os carros...


Carros são uma coisa legal e curiosa. Na verdade, a nossa relação com eles é que o é. Hoje eu dirigia cantando e dançando e pensava sobre isso. A importância de um automóvel vai muito além de nos transportar para os lugares para onde queremos ir. Andando dentro de um carro, é como se estivéssemos dentro de uma cápsula protetora que impede a visão de todos os outros sobre as coisas estranhas que podemos estar fazendo. Tenho certeza que eu jamais diria que ia pela rua, a pé, cantando e dançando. Não se estivesse com um mínimo de sobriedade.

Imagine se alguém no mais pleno estado de sanidade sairia pelas ruas cantando Sangue Latino, do Ney Matogrosso e, ainda, dando umas reboladinhas com os ombros para explicitar sua empolgação com a música. Pois, no carro, a gente se anima a fazer isso. Sozinhos ou não. Com todas as músicas. Não nos sentimos ridículos. E nunca achamos que será vergonhoso, pois estamos muito bem protegidos, “ninguém” pode nos ouvir ou ver. E se verem, ah, aceleramos e vamos embora, ninguém vai lembrar...

O carro nos permite sair para dar uma volta do jeito que estivermos. De pantufas, roupão, camiseta do tempo da guerra, sem calçados, seja como for. Nunca nos preocupamos com o fato de que podemos precisar descer em algum lugar. O aspecto protetor, escondidinho do nosso carro nos permite pensar que ali estamos totalmente seguros, livres para fazer qualquer fiasco como tirar a meleca do nariz em público (Eu não faço isso, mas quem nunca viu alguém fazendo dentro do veículo? A explicação é óbvia: a pessoa nunca acha que, dentro do carro, ela pode estar sendo observada!).

Isso fora os xingamentos que proferimos de dentro do nosso automóvel. Será que, se estivéssemos passando pelas pessoas que xingamos no trânsito sozinhos, a pé, teríamos a mesma coragem? E íamos acelerar e sair de fininho de que jeito, caso o bicho pegasse? É... essa é uma coisa a ser pensada...

Imagino que seja essa sensação de segurança que as pessoas sentem quando saem por aí fazendo barbaridades com seus carros. Porque, bem, sair cantando e dançando escondido dentro deles normalmente não prejudica ninguém. Abrir a janela e curtir um ar fresco, pensando na vida, enquanto se volta pra casa depois de um exaustivo dia de trabalho não tem mal algum. Mas dirigir em condições adversas, colocando a própria vida e a de outros em risco, só pode ser conseqüência da ideia de aconchego, firmeza e “escondidinho” que o carro nos dá.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

MORRER É RIDÍCULO

Morrer é ridículo




Dizem que você é os livros que você leu, os filmes a que assistiu, os romances que viveu, as músicas que escutou, os cigarros que fumou e a lista é interminável. Tudo bem. Mas, de repente, isso tudo e mais as coisas que planejou, tudo o que estudou, a carreira que conquistou, os amigos que cativou, a família que tanto amou, os inimigos que fez e a louça que se esqueceu de lavar ficam para trás. Sem liberdade de escolha.

Se você estiver doente, com alguma idade, sabendo o que te espera, não é menos dolorido. Mas, nesse caso, pode-se contar com o direito a ler o livro cuja leitura adiou por muito tempo, ouvir mais algumas vezes as músicas de que mais gostava, abraçar mais uma vez a família, os amigos e a pessoa amada. Assim, existirá a oportunidade de se despedir e, ainda, não deixar nada por fazer.

Mas você pode simplesmente sair de casa para trabalhar. Recém comeu duas bolachas e um copo de leite, já está pensando no que vai comer no almoço, e talvez não almoce. Está pensando nas meias que vai comprar à tarde, e talvez não compre. Está pensando em usar aquele casaco tão bonito na festa de sexta-feira, mas talvez não use. Qualquer idiotice pode acontecer, sem que sequer dê tempo de você perceber. E aí, já era.

Luis Fernando Verissimo já escreveu em “A metamorfose” que “como alguém pode viver sabendo que vai morrer?” Nós conseguimos. Temos medo. Mas não costumamos agir como se isso pudesse acontecer a qualquer momento. Deixamos de valorizar os melhores momentos, que podem ser os mais simples, para ficar reclamando. Do salário, da chuva, do calor, do trabalho, dos filhos e aí por diante. Reclamar não adianta. Temos é que aproveitar. Viver cada dia como se fosse o último.

Se o indivíduo já viveu mais de cem anos (claro que a gente sempre quer viver mais e mais), tudo bem, ele até já superou a expectativa de vida mundial. Mesmo que não tenha realizado nada de tão extraordinário durante o percurso, viver cem anos é, sem dúvida, um grande feito.

Mas, e se não deu tempo de fazer muito? E a janela que ficou aberta em casa? E as roupas no varal? E os estudos? E o texto que não terminou de ser escrito? É ridículo pensar que tudo pode acabar num piscar de olhos. Isso se der tempo de piscar. Morrer é ridículo. Porque procrastinar em vida é uma questão de escolha, mas deixar de fazer as coisas porque simplesmente nunca mais terá a oportunidade de fazer, assim, de uma hora para outra, é uma estupidez.

segunda-feira, 26 de julho de 2010

CRÔNICA: CONSIDERAÇÕES NARIGUDAS

CONSIDERAÇÕES NARIGUDAS




Eu, como todo o restante da espécie humana (a não ser os que sofrem de graves anomalias) tenho um nariz (oooohhh!!!!, que surpreendente!). Um nariz que aprendi a não mais chamar de grande. Hoje, chamá-lo-ia “imponente”. Ele serve para que eu possa coletar oxigênio do ambiente e liberar gás carbônico (admirável!). Também serve, se é que isso é relevante, para preencher o espaço entre os olhos e a boca, fazendo com que este seja um rosto, digamos, menos desarmonioso.

E só. Sim, porque o “imponente” aqui não me permite sentir e compreender o que são as tantas fragrâncias e odores de que tanto os outros falam. Nunca sei quando a comida está queimando se não verificar. Acredito que uso um bom perfume, porque pessoas de confiança escolhem para mim. Mas eu não costumo explicar pra todo mundo o que acontece. Só quanto tenho saco. E tento ser rápida, mas é difícil:

- Olha que cheiro ótimo, o desse creme!

- Desculpe, eu não sinto cheiro.

- Não sente cheiro? Desde quando isso?

- Desde sempre.

- E nunca foste tentar te curar disso?

Aí, complica e não dá pra ser rápida:

- Sim, mas o médico me recomendou que eu modificasse meus hábitos. Com a vida corrida que levo, eu costumo ficar ansiosa e estressada, o que não me permite psicologicamente ter hábitos perfeitos para tentar salvar a minha deficiência nasal e...

Então, o discurso mais comum é o seguinte:

- Olha que cheiro ótimo, o desse creme!

Aí, dou uma bela fungada e digo:

- É mesmo!

E tenho vontade de perguntar “tem gosto de quê?”, mas as pessoas certamente não entenderiam, então melhor parar por aqui mesmo.

Até adquiri algumas “compulsões narigudas”. Todas as manhãs e noites, necessito checar se o gás do fogão não está aberto. Seis ou sete vezes. É que meu nariz dificilmente detectará um vazamento, o que poderia ser fatal. E fico enchendo o saco de quem está por perto. Costumo esquecer que as outras pessoas sentem cheiro.

Bem, tudo tem um lado bom: se alguém, inclusive eu mesma, expelir “gases” incômodos, eu jamais irei reclamar e constranger o autor do “delito”, como a maioria do povo faz. Nunca implicarei com a pessoa que acaba de concluir seus exercícios físicos e, toda suada, entra no elevador. Tudo, para mim, é inodoro. (Ok, nem por isso deixo de tomar banho, que fique bem claro).

Mas, assim como os cegos e os surdos (tomadas as proporções), quando nos falta algum sentido, precisamos aperfeiçoar aqueles que temos (os que funcionam). Eu não preciso sentir o cheiro de uma feijoada para saber o quanto deliciosa ela é. Não preciso sentir o cheiro da natureza para saber o quão bela e acolhedora ela é.

A gente, que não sente os cheiros palpáveis, sente, sim, cheiro daquilo que está “nas entrelinhas”, sejam coisas boas ou ruins. Eu sinto o cheiro da mentira, das intrigas, da ignorância, da burrice, do autoritarismo, do deboche, da maldade. Quando os sentidos tornam-se subjetivos e se fundem, mesmo quem não sabe usar todos os sentidos cria imagens sinestésicas. E eu consigo sentir o cheiro amargo de tudo o que não presta. A maioria das pessoas consegue.

Que bom se pudéssemos sentir o cheiro apenas do amor, da alegria, da amizade, do companheirismo, das boas risadas, da verdade, do comprometimento e da lealdade. Bem, mas se as coisas ruins não existissem, como saberíamos reconhecer as boas? As coisas ruins também servem como aprendizado e blá, blá, blá.

Ora, isso são coisas que, talvez, nem os narizes mais eficazes, nem os sentidos mais aguçados tenham cacife para analisar.



Por Ana Paula Milani, julho de 2010.

terça-feira, 13 de julho de 2010

CRÔNICA: TALENTOS

TALENTOS




Confesso que nunca fui, digamos, algo que se aproximasse de uma esportista. Nos tempos de colégio, não raro fui ridicularizada por não saber manusear uma bola de vôlei, por exemplo. E me irritava muito com isso. Não me irritava por não saber jogar bola, e por não ter talento nem vontade ou interesse para aprender. Eu me irritava com o fato de as pessoas não compreenderem que eu não tinha aptidão para esse tipo de coisa. Eu não tinha esse talento, mas, como todas as pessoas, algum talento eu tinha.

A bola passava por mim. Ou ela me acertava em cheio ou eu fugia dela.

Aí, vinha algum berro simpático:

- Vai “na” bola, ô boca aberta.

Eu não tinha dificuldades para dar respostas como:

- Eu não vou “na” bola. Vai para o inferno!

Ou até coisas mais indignadas, ou mais incisivas, e por aí vai.

Eu só não conseguia entender como um jogo que deveria ser amistoso, em uma aula de educação física, poderia ser a coisa mais importante na vida de algumas pessoas naquele momento. Sempre pensei que existiam coisas mais importantes. Nada contra quem gosta, mas eu não gostava. E não gosto. Eu sempre respeitei o gosto e o talento alheio, e aprecio muito que o meu seja respeitado.

Respeitar os outros é o pontapé inicial para que se seja respeitado. O que eu quero dizer é que todos têm um talento, e, se essa capacidade serve para alguma coisa boa na humanidade, ela deve ser valorizada. Não importa se o talento de alguém é fazer mais pontos no vôlei ou um belo topete no chimarrão, se é fazer cálculos mirabolantes ou preparar sanduíches deliciosos, se é ser campeão de ginástica olímpica ou um leitor assíduo, se é ser o melhor pára-quedista do mundo ou apenas desempenhar muito bem um trabalho, seja em que área for.

Os gênios estão por aí, e devem ser valorizados. Claro que alguns têm o “talento” de magoar as pessoas, roubar, estuprar, assassinar estupidamente e sem motivo pessoas inocentes que estão “atrapalhando” seu caminho, humilhar seus subordinados, espancar suas esposas, desviar dinheiro público, falar mal dos outros ou apenas serem egoístas. Mas esses talentos também devem ser reconhecidos, se não nas cadeias oficiais, ao menos nos presídios da vida e da consciência.

O importante é que todo mundo sabe fazer algo bom, dentro das suas possibilidades. Ser um bom profissional, uma boa mãe, um bom pai, um bom aluno, um bom amigo, cumprimentar os colegas com simpatia mesmo nos dias mais difíceis ou rir de si mesmo não são coisas tão comuns nos dias de hoje. Todas as coisas boas devem ser aceitas e consideradas, independente se alguns dos talentos em questão sejam salvar inúmeras vidas todos os dias ou acender o cigarro na boca do fogão sem tostar a sobrancelha.



Ana Paula Milani, Julho de 2010.

terça-feira, 29 de junho de 2010

O MUNDO DOS ECLÉTICOS

O MUNDO DOS ECLÉTICOS




O dicionário Michaelis da Língua Portuguesa define “eclético” da seguinte maneira: 1 Relativo ao ecletismo. 2 Que seleciona; que escolhe de várias fontes. 3 Que não segue um só sistema de Filosofia, Medicina etc., mas seleciona e aproveita o que considera melhor ou verdadeiro nos vários métodos ou doutrinas. 4 Composto de elementos oriundos de várias fontes. Identifico-me profundamente com essa conceituação. E admiro quem pode assim ser definido.

Na prática, os ecléticos não buscam por rótulos. Eles são o que são. Podem seguir um estilo a cada dia, e não deixam de ser autênticos. Ouvem qualquer tipo de música, às vezes só para conhecerem. Assistem aos mais diversos tipos de filmes, para poderem escolher de que tipo mais gostam. Leem de tudo, pois o que importa é ter o que ler.

Os ecléticos podem ser pessoas chiques em dado momento, e simplicíssimas em outro. De qualquer maneira, eles quase sempre se divertem. Pode ser bebendo vinho importado e comendo fondue em um sofisticado restaurante em Gramado ou bebendo cerveja e comendo pastel no bar da esquina. O que importa é a boa companhia. É muito bom poder se interessar e gostar de várias coisas ao mesmo tempo.

Os ecléticos costumam odiar o tédio. Mas, para eles, combater o tédio pode ser uma tarefa muito fácil. Basta pegar um bom disco, um bom livro, um bom filme, uma boa bebida, um baralho, um programa de televisão razoável. Enfim, como bons ecléticos, sempre temos mais, bem mais do que apenas uma opção para espantar o ócio.

O grupo de amigos do eclético também não tem características fixas. Ali, podemos encontrar adolescentes, professores, roqueiros, escritores, pessoas de meia-idade, políticos, psicólogos, contadores, advogados, atores, pessoas da terceira idade, religiosos e por aí vai. O eclético tem interesse em ouvir o que todas as pessoas têm a contar. Assim, as amizades dele também não são rotuladas.

Há pessoas que imaginam que o eclético seja alguém sem estilo, sem personalidade. Pelo contrário. O eclético resulta de uma fusão de vários estilos. O eclético não se prende a preferências. Busca, sim, experimentar de tudo para saber quais são as coisas de que gosta. Se ele não ler Jorge Amado, como saberá se gosta ou não? E se não assistir a Gran Torino? O eclético tem a cabeça aberta a novas experiências.

Os ecléticos tem a cabeça aberta para o mundo. Mas, de que adiantaria ter ideias inovadoras para o mundo e fechadas para si mesmo? Pois, então, acima de tudo, nós, os ecléticos, temos a cabeça aberta para nós mesmos. Se não rotulamos as coisas e as outras pessoas, não nos rotulamos. O eclético se aceita como é, sempre procurando aspectos em que pode melhorar.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

E-mail recebido da minha amiga e profe Silvania Colaço. Valeu!!!!

Oi, Ana Paula!


Adorei teu blog. Acho que a melhor forma de educar é pelo exemplo. Com teus textos, tu podes incentivar teus alunos a escreverem e também estarás ajudando-os a se tornarem mais críticos.

Além disso, é muito bom ler um texto bem escrito, com criatividade e correção na linguagem (aspectos não muito comuns nos textos que se veem pela internet). Parabéns!

Um abraço!

Silvania

segunda-feira, 21 de junho de 2010

SUBJETIVIDADES

SUBJETIVIDADES




Eu, como qualquer profissional da área de letras, adoro aspectos ligados à linguagem, dentre eles a gramática. A gramática é algo estrutural, de certa maneira subjetivo. Mas confesso que não entendo (ou não quero entender, pois não concordo) a maioria dos autores em um aspecto: a classificação do substantivo em concreto ou abstrato.

A classificação dos substantivos em concretos ou abstratos deveria levar em consideração a significação que essas palavras têm para o falante. Vejamos: como Deus, por exemplo, pode ser classificado como concreto? Muitos dizem que substantivo concreto é aquele que “não depende de nada para existir”, ou “que pode ser visto ou tocado”. Quer dizer que essas pessoas, então, já viram ou tocaram em Deus? Será que tomaram um chimarrão com ele?

Aí, alguém pode pensar: “mas Ele não depende de ninguém para existir”. Como não? Eu, por exemplo, acredito piamente na existência de Deus, até me considero bem amiga do Cara, tenho com ele monólogos bastante freqüentes, mas nunca o vi nem toquei nele. Se eu parasse de acreditar em Deus, ele deixaria de existir para mim. Logo, se o indivíduo não acredita na Sua existência, então, para esses, Ele não existe. Então, vai dizer que alguém tão subjetivo e espiritual não depende de ninguém para existir? Então, estaríamos excluindo os ateus nessa classificação morfológica?

Os conceitos subjetivos são inúmeros, e, por isso, tão passíveis de discussão. O trabalho é subjetivo, assim como o amor. A diversão é subjetiva, assim como a tristeza. O sentido da vida é subjetivo e, mesmo que a vida não tenha sentido, vale a pena investir nela. Assim como devemos e precisamos investir no trabalho, no amor, na diversão e, inclusive, na tristeza.

Não precisamos de classificações. A gramática é que precisa. O que é subjetivo serve para ser vivido, não precisa ter sentido. Deus é, para mim (quem sabe, para boa parte das pessoas), morfológica e materialmente, abstrato. Mas não é porque as coisas são abstratas que não podemos acreditar e apostar nelas. O ser humano vive uma época em que é muito difícil e pouco seguro confiar apenas em coisas concretas.

Resta-nos dar crédito e valor à abstração e subjetividade do trabalho, do amor, da diversão, da tristeza, de Deus (ou até de seus oponentes, caso prefiram) sem esquecer das nossas subjetividades. Pode ser que, naquilo que diverge ou não consegue ver ou tocar, o ser humano encontre um sentido nessa vida.



(Ana Paula Milani, junho de 2010)

segunda-feira, 14 de junho de 2010

CRÔNICA - A VIDA É UM CIRCO

A VIDA É UM CIRCO



Nunca tive interesse nenhum por circos. Durante todos esses anos de existência, fui a um circo apenas uma vez. Não achei muita graça. Lá pelos idos de 1992, quando eu tinha oito anos e meu jovem irmão, quatro. Meu pai nos fez o convite. Pegamos o ônibus. Logo estávamos lá. Ao que chegaram, na rua, em frente ao circo, aqueles dois, três, quatro palhaços e despertaram o choro aterrorizado de meu inocente irmão. Ele também nunca gostou muito de palhaços. Os profissionais do riso constrangeram-se. Perguntaram:

- Por que está chorando, amiguinho? Não precisa ter medo da gente!

Meu corajoso irmão respondeu, enxugando as lágrimas:

- Não tenho medo de vocês.

E foi indagado novamente:

- E tem medo de que, então?

Meu espirituoso e sagaz irmão defendeu-se, encerrando a conversa:

- Eu tenho medo do... do... do leão.

E pronto. Fora a barulheira do globo da morte (homens gostam de sentar perto de coisas radicais e barulhentas, os pais não são diferentes), essa é a lembrança mais marcante da minha única ida ao circo. Claro que, para uma criança de oito anos, ver animais silvestres, que deveriam estar em suas casas, em um lugar muito distante, sem serem importunados, era algo bastante empolgante para a época.

O que nós, cândidas crianças em sua primeira vez como espectadoras de um picadeiro, não sabíamos, é que vivenciaríamos um circo praticamente em tempo integral, sem sequer precisar entrar debaixo da lona. Com isso, não quero dizer que a vida é engraçadinha, envolvente, como seria a proposta de um espetáculo circense. Nesses espetáculos, também temos uma forte carga de palhaçadas, e não tenho medo de dizer que a vida em sociedade é uma palhaçada em diversos aspectos.

Vejamos a política. É um circo. Também o é o mundo capitalista e consumista em que vivemos, as relações interpessoais, o mercado de trabalho (por que não?), a impunidade diante da criminalidade e da violência, a violência gratuita, a avidez das pessoas em cuidar da vida alheia, as desigualdades sociais, a má distribuição de renda, a falta de oportunidades, o culto exagerado de uma beleza inatingível, o preconceito, a soberba e a falta de respeito.

Por isso que o público dos circos de verdade diminuiu. Para que ir a espetáculos circenses para ver palhaçadas se, a cada novo dia, nós as testemunhamos, debaixo dos nossos narizes, sem pagar um tostão de ingresso por isso? Mas a sociedade adora ver as baixarias. É disso que o povo gosta, é isso que o povo quer.

E a vida é um grande, imenso circo.

(Ana Paula Milani, Junho de 2010)

Sejam bem vindos!!!

Este blog tem o intuito de divulgar meus escritos, sem sensacionalismos ou fofocas. Apenas visões de mundo colocadas por meio de crônicas ou contos.

Para quem não me conhece, meu nome é Ana Paula Nunes Milani Zaboetzki, sou professora de Língua Portuguesa no Ensino Fundamental, em Capão do Cipó e de Literatura Brasileira no Ensino Médio na Escola de Educação Básica da URI, em Santiago. Sou formada em Letras português-inglês pela URI Santiago e Especialista em Leitura, Produção, Análise e Reescritura Textual pela mesma universidade.

Espero que sintam-se acolhidos o suficiente para, após a leitura, fazer sua participação.
Deixe se comentário, sua visão de mundo!