segunda-feira, 26 de julho de 2010

CRÔNICA: CONSIDERAÇÕES NARIGUDAS

CONSIDERAÇÕES NARIGUDAS




Eu, como todo o restante da espécie humana (a não ser os que sofrem de graves anomalias) tenho um nariz (oooohhh!!!!, que surpreendente!). Um nariz que aprendi a não mais chamar de grande. Hoje, chamá-lo-ia “imponente”. Ele serve para que eu possa coletar oxigênio do ambiente e liberar gás carbônico (admirável!). Também serve, se é que isso é relevante, para preencher o espaço entre os olhos e a boca, fazendo com que este seja um rosto, digamos, menos desarmonioso.

E só. Sim, porque o “imponente” aqui não me permite sentir e compreender o que são as tantas fragrâncias e odores de que tanto os outros falam. Nunca sei quando a comida está queimando se não verificar. Acredito que uso um bom perfume, porque pessoas de confiança escolhem para mim. Mas eu não costumo explicar pra todo mundo o que acontece. Só quanto tenho saco. E tento ser rápida, mas é difícil:

- Olha que cheiro ótimo, o desse creme!

- Desculpe, eu não sinto cheiro.

- Não sente cheiro? Desde quando isso?

- Desde sempre.

- E nunca foste tentar te curar disso?

Aí, complica e não dá pra ser rápida:

- Sim, mas o médico me recomendou que eu modificasse meus hábitos. Com a vida corrida que levo, eu costumo ficar ansiosa e estressada, o que não me permite psicologicamente ter hábitos perfeitos para tentar salvar a minha deficiência nasal e...

Então, o discurso mais comum é o seguinte:

- Olha que cheiro ótimo, o desse creme!

Aí, dou uma bela fungada e digo:

- É mesmo!

E tenho vontade de perguntar “tem gosto de quê?”, mas as pessoas certamente não entenderiam, então melhor parar por aqui mesmo.

Até adquiri algumas “compulsões narigudas”. Todas as manhãs e noites, necessito checar se o gás do fogão não está aberto. Seis ou sete vezes. É que meu nariz dificilmente detectará um vazamento, o que poderia ser fatal. E fico enchendo o saco de quem está por perto. Costumo esquecer que as outras pessoas sentem cheiro.

Bem, tudo tem um lado bom: se alguém, inclusive eu mesma, expelir “gases” incômodos, eu jamais irei reclamar e constranger o autor do “delito”, como a maioria do povo faz. Nunca implicarei com a pessoa que acaba de concluir seus exercícios físicos e, toda suada, entra no elevador. Tudo, para mim, é inodoro. (Ok, nem por isso deixo de tomar banho, que fique bem claro).

Mas, assim como os cegos e os surdos (tomadas as proporções), quando nos falta algum sentido, precisamos aperfeiçoar aqueles que temos (os que funcionam). Eu não preciso sentir o cheiro de uma feijoada para saber o quanto deliciosa ela é. Não preciso sentir o cheiro da natureza para saber o quão bela e acolhedora ela é.

A gente, que não sente os cheiros palpáveis, sente, sim, cheiro daquilo que está “nas entrelinhas”, sejam coisas boas ou ruins. Eu sinto o cheiro da mentira, das intrigas, da ignorância, da burrice, do autoritarismo, do deboche, da maldade. Quando os sentidos tornam-se subjetivos e se fundem, mesmo quem não sabe usar todos os sentidos cria imagens sinestésicas. E eu consigo sentir o cheiro amargo de tudo o que não presta. A maioria das pessoas consegue.

Que bom se pudéssemos sentir o cheiro apenas do amor, da alegria, da amizade, do companheirismo, das boas risadas, da verdade, do comprometimento e da lealdade. Bem, mas se as coisas ruins não existissem, como saberíamos reconhecer as boas? As coisas ruins também servem como aprendizado e blá, blá, blá.

Ora, isso são coisas que, talvez, nem os narizes mais eficazes, nem os sentidos mais aguçados tenham cacife para analisar.



Por Ana Paula Milani, julho de 2010.

terça-feira, 13 de julho de 2010

CRÔNICA: TALENTOS

TALENTOS




Confesso que nunca fui, digamos, algo que se aproximasse de uma esportista. Nos tempos de colégio, não raro fui ridicularizada por não saber manusear uma bola de vôlei, por exemplo. E me irritava muito com isso. Não me irritava por não saber jogar bola, e por não ter talento nem vontade ou interesse para aprender. Eu me irritava com o fato de as pessoas não compreenderem que eu não tinha aptidão para esse tipo de coisa. Eu não tinha esse talento, mas, como todas as pessoas, algum talento eu tinha.

A bola passava por mim. Ou ela me acertava em cheio ou eu fugia dela.

Aí, vinha algum berro simpático:

- Vai “na” bola, ô boca aberta.

Eu não tinha dificuldades para dar respostas como:

- Eu não vou “na” bola. Vai para o inferno!

Ou até coisas mais indignadas, ou mais incisivas, e por aí vai.

Eu só não conseguia entender como um jogo que deveria ser amistoso, em uma aula de educação física, poderia ser a coisa mais importante na vida de algumas pessoas naquele momento. Sempre pensei que existiam coisas mais importantes. Nada contra quem gosta, mas eu não gostava. E não gosto. Eu sempre respeitei o gosto e o talento alheio, e aprecio muito que o meu seja respeitado.

Respeitar os outros é o pontapé inicial para que se seja respeitado. O que eu quero dizer é que todos têm um talento, e, se essa capacidade serve para alguma coisa boa na humanidade, ela deve ser valorizada. Não importa se o talento de alguém é fazer mais pontos no vôlei ou um belo topete no chimarrão, se é fazer cálculos mirabolantes ou preparar sanduíches deliciosos, se é ser campeão de ginástica olímpica ou um leitor assíduo, se é ser o melhor pára-quedista do mundo ou apenas desempenhar muito bem um trabalho, seja em que área for.

Os gênios estão por aí, e devem ser valorizados. Claro que alguns têm o “talento” de magoar as pessoas, roubar, estuprar, assassinar estupidamente e sem motivo pessoas inocentes que estão “atrapalhando” seu caminho, humilhar seus subordinados, espancar suas esposas, desviar dinheiro público, falar mal dos outros ou apenas serem egoístas. Mas esses talentos também devem ser reconhecidos, se não nas cadeias oficiais, ao menos nos presídios da vida e da consciência.

O importante é que todo mundo sabe fazer algo bom, dentro das suas possibilidades. Ser um bom profissional, uma boa mãe, um bom pai, um bom aluno, um bom amigo, cumprimentar os colegas com simpatia mesmo nos dias mais difíceis ou rir de si mesmo não são coisas tão comuns nos dias de hoje. Todas as coisas boas devem ser aceitas e consideradas, independente se alguns dos talentos em questão sejam salvar inúmeras vidas todos os dias ou acender o cigarro na boca do fogão sem tostar a sobrancelha.



Ana Paula Milani, Julho de 2010.